31 maio 2004



A Rede

Como boa genéticamente-baiana que sou, é na rede que tenho feito tudo.
No balanço desses bytes, embalada por uma banda larga, tenho visto a vida passar. Nos dois últimos meses, só tenho existido virtualmente.
Na rede escolho o jantar, falo com amigos, rogo praga nos inimigos (hahaha, brincadeira), estudo, trabalho, e o mais perigoso: me apaixono...
Esse calor vitrificado, essa perturbação on line, esse desassossego conectado à alma...
Esses romances de curta duração, essa alegria platônica, essas pílulas de vitaminas para o ego, tem um efeito bombástico. Viciam. E essa louquinha tem tão baixa resistência...
Posso até sentir uma brisa a cada comentário, vejo o mar ao fundo quando chega um email, e a cada conversa mais longa, me encanto com o por do sol. E aqui fora como fica ? Pois é...
Tomei uma sapatada de uma amiga que me jogou na água fria. Pare já.
Sou moça obediente. Daqui pra paranóia é um pulo. Então vou entrar no processo de desintoxicação.
Mas quanta saudade vou sentir dos ares perfumados de noites passadas em tão doce companhia...

28 maio 2004


Broken Heart

Tenho um coração de cristal, daqueles fininhos que dão medo de quebrar.Mas insisto em expô-lo às intempéries. Tenho uma alma diamante, inconformada, feminina. O diamante que tudo corta, tatua o cristal. Trago minhas portas abertas, para aquele que chega se sentir bem vindo e que aquele que se vai não se sinta preso. E desfilam em minhas salas pessoas de todos os tipos. Desfrutam dos meus sabores e calores, e pintam nas paredes da minha memória, desenhos coloridos que dão vida à minha história. Tem aqueles que vieram pra ficar e outros que estão só visita, mas me entrego a todos,permitindo-me experimentar de todas suas interações. Alguns não gostaram da arquitetura, derrubaram paredes inteiras, outros construiram abrigos. No último mês houve um que entrou oferecendo seus préstimos, o recebi com rendas e louças, bebemos chá e conversamos, por muitas horas de um não-relógio.Trouxe mentiras para sobremesa. Provei seu sabor amargo. Ainda tenho na língua a sensação incômoda. Passei tempo até digerir.
Fui visitar o jardim. Abundância de flores novas. Latente pulsação de vida. Senti perfumes, questionei espinhos. Desafiando o verde: Mandacaru. Música da terra onde o sol chega primeiro, traz na sua carne a água mais fresca e quem vê sua flor, seduzido será. Mas tem espinhos que cegam, obrigando o olhar para dentro como o Alexandre de Graciliano Ramos. Me feri e vi sangrar também uma fada com cores de Espanha.Ouvi um estalo fininho, daqueles em que se teima em acreditar, olhei meu cristal. Perdeu uma parte. Do ferimento do espinho, apontava uma gota de sangue, não hesitei, levei o corte a boca, e na minha língua alarmada o sabor da sobremesa amarga dos homens.

25 maio 2004


O amigo do homem

Glauber Rocha filmou o velório-enterro de Di Cavalcanti. Fez um curta.
Eram amigos em vida, por que não seriam na morte ? Certamente a mais linda homenagem póstuma em que meus olhos enormes já pousaram.Coisa de baiano. Fez da chatice uma ode. Di deve estar rindo até agora das loucuras de Glauber. Porque Di era bem humorado, carioca solar, cores e gostos. Mas não transmitiu esses genes aos seus descendentes, falhou, não se pode acertar sempre. Sua família proibiu a veiculação do curta no Brasil. Vejo Di num bordel etéreo, tomando uns goles e matutando: Eta povo ignorante !!!
Se você é brasileiro, gosta de samba, suor, cerveja, mulher bonita e arte de primeira, é como eu, Glauber e Di, não suporta essas regras babacas, aproveita e vê o curta, porque a internet tá aí pra isso mesmo... Exercitar as liberdades... Pra ver clica aqui.


Teletransporte



Tenho passado muitas noites em Portugal, com a cabeça no Canadá. O desejo pula da Itália para Santo André, como quem faz baldeação no metrô Sé. Enterro meu sexo em Campinas, para que ele orgasme em paz. Mas no meu peito, Paraíba-Pernambuco. Saudade em Nova Odessa, curiosidade faz ponto na Moóca e a desilusão mudou-se para o Anhangabaú.Busco consolo no Rio de Janeiro, mas se Deus me desse a graça entregava tudo, até minha alma, na Bahia.

23 maio 2004



O Homem que contava histórias

O Edson Cordeiro, contando sobre quando ele cantava na rua pra ganhar a vida, disse que ficou muito feliz quando conseguiu parar um paulistano. É, a vida nesta megalópole é completamente maluca. Ninguém para, nem pra olhar, nem pra falar, é tudo movimento. Outro dia, eu paradinha sentada na calçada, esperando o horário para entrar em um show, vi uma cena daquelas que não se esquece jamais.Este sujeito, puxando um carrinho de feira, onde trazia todos os seus pertences, parado no meio da calçada, fazia seu discurso. Os transeuntes desviavam sem olhá-lo, como se ali tivesse um obstáculo inanimado. Eu e outros que estavam sentados próximos a mim, observávamos aquele homem, falando tão animadamente. Ele contava histórias.Interessantíssimas. Enquanto as pessoas passavam ele dizia :
"A Terra é um planeta, não possui luz própria, depende do Sol para que exista vida. Ela está dentro do Sistema Solar, e este por sua vez fica dentro do Universo.Então pergunto: o que é mais distante, daqui para cima, ou daqui para baixo ? Eu mesmo respondo, se o universo é infinito, esta questão não importa, qualquer ponto será o MEIO ! "

Adorei, ainda ouvi outra de suas histórias, levantei e fui conversar com ele. Ele me disse que gostava de viver por ali contando suas histórias, que leu muitos livros, e não gostava de andar pelo centro, pois lá as pessoas o olhavam e diziam : lá vai o bêbado, sujo, nojento... "Por aqui, ninguém me olha e eu posso viver em paz".
Este homem parou alguns paulistanos, e eu sou-lhe muito grata, pois resolveu uma questão filosófica dentro da minha cabecinha. Não sei de onde vim, muito menos pra onde vou, tudo que sei é que já estou no meio do caminho...