31 dezembro 2020

O mundo acabou e o inferno é aqui

 
Último dia de 2020, um ano infernal para se resumir.
PANDEMIA. Um Corona vírus, Sarscov 19, mais conhecido como Covid, já deu a volta no planeta inteiro várias vezes e apresenta mutações altamente contagiosas. Em um ano tudo mudou.
Trancados, desempregados e desesperados. Eu e boa parte das pessoas que conheço.
O Presidente é um doido de pedra, a incompetência é a marca de seu governo, e hoje já sâo 192.000 mortos. Nada de vacina por aqui, enquanto na Europa já se aplica a segunda dose.
Perdemos muita gente linda e boa, artistas, pensadores, jornalistas, pessoas de quem precisávamos para a construção de um novo tempo. Se foram.
Tudo está muito louco, feminicídios aos montes, radicais de todos os lados invocando seus mais profundos ódios, quase 30 crianças mortas pela polícia, vários crimes bárbaros cometidos por conta de racismo.
Tá todo mundo doido !
Em Agosto, descobri que fui invadida por um câncer de mama.
Acho que tudo já está tão surreal que nem consegui me abalar. Sério, do fundo do meu coração, estou tranquila (ou anestesiada, sei lá). Tenho cá pra mim que enfrentar este câncer será como atravessar um portal, preciso mudar minha vida, do jeito que está nâo é mais viável. Quatro anos trancada dentro desta casa, cuidando 24 horas por dia de uma pessoa cujo único objetivo na vida é ver a vida passar sem que ela precise fazer absolutamente nada.
Nâo é possível amar na escravidão.
Não nasci com personalidade que me permita ser escrava de ninguém.
Toda a minha capacidade de resiliência se esgotou.
Se é para eu sobreviver a este câncer, eu quero minha vida de volta.
Sinto muito pela minha mãe que esperava que eu fosse sua escrava até o fim dos meus dias, não serei.
Eu dei 5 anos e toda a saúde que eu tinha.
Agora é hora de me recriar. 2021 será o ano para cuidar de mim.
Só poderei trabalhar em 2022, e isso é outro absurdo.
O ano nem começou, e para mim já está com ingressos esgotados.
Mas também teve algo revolucionário: em Setembro comprei um Ukulele e estou aprendendo tocar sozinha, com o atrevimento e a obstinação que me são característicos.
Plantei algumas árvores, vi milhares de filmes, e passei todo o nervoso que é possível um ser humano passar sem ter um AVC.
No geral se eu morrer está tudo ok, tô de boa com a existência.
Falei com quem tinha que falar, viajei sempre que pude, não tenho nada pendente pra resolver com ninguém. Tem aquele moço que não me quer mas não me larga, mas no fundo, no fundo, bem lá no fundo, eu sempre soube que não daria em nada, então também com isso eu estou tranquila, amor não correspondido é uma droga voraz, mas também é possível largar, a fase da abstinência dói pra caramba, mas é altamente pedagógica.
Se eu sobreviver vou me dedicar à ir embora morar na montanha, reflorestar uma certa pedreira e tocar muitas canções para os passarinhos.
Vou lutar para estar viva e livre.
Sinto muito pelos outros, mas chegou o tempo de lutar por mim.



09 maio 2020

Jubileu


Na noite que o 50 chegou, eu estou só.
Exatamente como naquele primeiro dia em que me tiraram a ferro.
Novamente é véspera do Dia das mães.
Ela desde sempre preferiu dormir e não participar.
O meu papel de coadjuvante fora acordado sem que me consultassem.
Erro crasso, estraguei o projeto na largada.
Agora é 2020, o mundo virou do avesso por conta de uma epidemia mundial, Covid 19. Todos trancados em casa (em tese, muita gente horrível nas ruas, sem máscaras), o medo da morte (deles), os piores sentimentos aflorados...
No Brasil um fascista está no poder, espalha ódio e ignorância por onde passa e metade do país o abençoa com grunhidos de porcos a caminho do abatedouro. Bestas desumanas.
Os valores foram invertidos: mulheres amamentando são chamadas de imorais, afirmam categoricamente que a Terra é plana como uma pizza, contestam a ciência, pregam um Cristo que recebe via cartão de crédito e discrimina qualquer diferença da liberal classe média machista racista xenófoba.
Estou trancada em casa faz quatro anos. Não tenho um emprego, virei escrava do lar. Cuido d'Ela cuspindo fel, enquanto ela se faz de besta e regozija.
Não estou feliz, nem saudável. 
E não me dão a caridade de ser ouvida quando tento reclamar, pois afirmam que Deus está vendo meu esforço e minha bondade em servir por vontade própria 24 horas por dia, por amor a Ela. Além do mais tenho comida e um teto onde me abrigar. É unânime: devo ser escravizada e me sentir feliz pois serei recompensada lá no céu quando eu morrer.
Alguns dizem que sentirei saudades destes dias.
Ou eles estão loucos ou eu estou, e nem percebi.
Algumas coisas foram boas, a ausência de dinheiro me fez aprender o minimalismo, o consumo deixou de ser prazer, passei a usar todas as coisas que acumulei ao longo dos tempos, aprendi a aceitar e defender meus limites, e agora consigo verbalizar e sinalizar quando me sinto desrespeitada.
Não sou mais Terra de Ninguém.
Agora não reviro minhas tripas tentando agradar e ser aceita por quem quer que seja.
Aprendi enfim que o amor da minha vida sou eu.
E passei a tratar meu corpo com carinho, ele têm sido antes de tudo um forte, nordestina carne amiga.
O coração ainda é burro tadinho,um iludido, fica tentando façanhas infrutíferas: ama quem não me quer, ama quem só vê a si mesmo, ou ressuscita fantasmas que o vento levou... O melhor é não dar muita atenção...
Não há uma só esperança olhando daqui até o horizonte, nenhuma perspectiva de futuro. Crise mundial, desemprego mundial, epidemia mundial.
Se Ela me faltar não tenho nenhum dinheiro para sobreviver já na manhã seguinte, prognóstico : moradora de rua.
Tenho barraca, saco de dormir, mochila e carrinho de bagagem, tenho também uma bicicleta. Pelo menos posso sair por aí, sem destino.
Por conta da epidemia, tenho conversado com pessoas, acho bacana não deixar nada por dizer, se morrer vou leve.
Ontem o meu igual me procurou, apesar das falas repetidas de nosso teatro particular, foi bom poder falar e ouvir com serenidade de nosso laço imaginário que já beira os 33 anos. Dá conforto saber ter morada na memória de alguém.
Nós realmente somos um, mesmo não sendo e sabemos disso. Amo essa liberdade de sermos sem estarmos.
50 anos. Jamais imaginei. Jurava que não chegaria aos 40.
Agora eu desenho, faço coisas em madeira, costuro, aprendi a tricotar de verdade, sei reformar uma casa todinha, morei em vários lugares, plantei centenas de árvores, instalei bibliotecas virtuais em três quimioterapias infantis, ajudei a alfabetizar pessoas, trabalhei com idosos, com população em condição de rua, com mulheres vítimas de violência. Plantei hortas com trabalhadores, criei brinquedos com crianças, ensinei cuidar da água, da terra, do lixo.
Subi montanhas, mergulhei em cavernas, atravessei continentes, tomei duas anestesias gerais, fiz duas cirurgias, voei, nadei. Casei 4 vezes. Declarei todos os meus amores. Passei vontade, passei vergonha, passei nervoso.
Enfrentei o medo até ele desaparecer.
Parei de alimentar os monstros.
Me sinto bastante diferente. Tão diferente que a inadequação pode ser vista da Lua.
Meu maior desejo hoje é o isolamento. Uma casinha pequenina construída com as minhas mãos, lá no pé daquela montanha. Jardim, horta, pomar, caramanchão atelier. Eu, os bichos e a roça.
É noite de Jubileu, estou só, como naquele primeiro dia.
Anteontem foi Lua de Wesak. Eu me sinto bem iluminada.
Miguel continua comigo, faz uma graça, prega uma peça, ontem mesmo apagou um texto enorme em que eu descia a lenha na Humanidade. Acho que era forte demais para os mortais, huahuahuahuahuahuahua, ele deletou, fiquei brava na hora, depois ri com ele, caçoando da minha cara.
Durante toda a vida me chamaram de louca, sempre odiei, sempre me achei realista e lúcida.
Agora depois de quatro anos de claustro, suspeito que endoidei. Mas essa doidêra dá uma serenidade boa, que antes eu não tinha. Hoje eu faço 50 anos e a única coisa que sinto é que me basto.