09 maio 2020

Jubileu


Na noite que o 50 chegou, eu estou só.
Exatamente como naquele primeiro dia em que me tiraram a ferro.
Novamente é véspera do Dia das mães.
Ela desde sempre preferiu dormir e não participar.
O meu papel de coadjuvante fora acordado sem que me consultassem.
Erro crasso, estraguei o projeto na largada.
Agora é 2020, o mundo virou do avesso por conta de uma epidemia mundial, Covid 19. Todos trancados em casa (em tese, muita gente horrível nas ruas, sem máscaras), o medo da morte (deles), os piores sentimentos aflorados...
No Brasil um fascista está no poder, espalha ódio e ignorância por onde passa e metade do país o abençoa com grunhidos de porcos a caminho do abatedouro. Bestas desumanas.
Os valores foram invertidos: mulheres amamentando são chamadas de imorais, afirmam categoricamente que a Terra é plana como uma pizza, contestam a ciência, pregam um Cristo que recebe via cartão de crédito e discrimina qualquer diferença da liberal classe média machista racista xenófoba.
Estou trancada em casa faz quatro anos. Não tenho um emprego, virei escrava do lar. Cuido d'Ela cuspindo fel, enquanto ela se faz de besta e regozija.
Não estou feliz, nem saudável. 
E não me dão a caridade de ser ouvida quando tento reclamar, pois afirmam que Deus está vendo meu esforço e minha bondade em servir por vontade própria 24 horas por dia, por amor a Ela. Além do mais tenho comida e um teto onde me abrigar. É unânime: devo ser escravizada e me sentir feliz pois serei recompensada lá no céu quando eu morrer.
Alguns dizem que sentirei saudades destes dias.
Ou eles estão loucos ou eu estou, e nem percebi.
Algumas coisas foram boas, a ausência de dinheiro me fez aprender o minimalismo, o consumo deixou de ser prazer, passei a usar todas as coisas que acumulei ao longo dos tempos, aprendi a aceitar e defender meus limites, e agora consigo verbalizar e sinalizar quando me sinto desrespeitada.
Não sou mais Terra de Ninguém.
Agora não reviro minhas tripas tentando agradar e ser aceita por quem quer que seja.
Aprendi enfim que o amor da minha vida sou eu.
E passei a tratar meu corpo com carinho, ele têm sido antes de tudo um forte, nordestina carne amiga.
O coração ainda é burro tadinho,um iludido, fica tentando façanhas infrutíferas: ama quem não me quer, ama quem só vê a si mesmo, ou ressuscita fantasmas que o vento levou... O melhor é não dar muita atenção...
Não há uma só esperança olhando daqui até o horizonte, nenhuma perspectiva de futuro. Crise mundial, desemprego mundial, epidemia mundial.
Se Ela me faltar não tenho nenhum dinheiro para sobreviver já na manhã seguinte, prognóstico : moradora de rua.
Tenho barraca, saco de dormir, mochila e carrinho de bagagem, tenho também uma bicicleta. Pelo menos posso sair por aí, sem destino.
Por conta da epidemia, tenho conversado com pessoas, acho bacana não deixar nada por dizer, se morrer vou leve.
Ontem o meu igual me procurou, apesar das falas repetidas de nosso teatro particular, foi bom poder falar e ouvir com serenidade de nosso laço imaginário que já beira os 33 anos. Dá conforto saber ter morada na memória de alguém.
Nós realmente somos um, mesmo não sendo e sabemos disso. Amo essa liberdade de sermos sem estarmos.
50 anos. Jamais imaginei. Jurava que não chegaria aos 40.
Agora eu desenho, faço coisas em madeira, costuro, aprendi a tricotar de verdade, sei reformar uma casa todinha, morei em vários lugares, plantei centenas de árvores, instalei bibliotecas virtuais em três quimioterapias infantis, ajudei a alfabetizar pessoas, trabalhei com idosos, com população em condição de rua, com mulheres vítimas de violência. Plantei hortas com trabalhadores, criei brinquedos com crianças, ensinei cuidar da água, da terra, do lixo.
Subi montanhas, mergulhei em cavernas, atravessei continentes, tomei duas anestesias gerais, fiz duas cirurgias, voei, nadei. Casei 4 vezes. Declarei todos os meus amores. Passei vontade, passei vergonha, passei nervoso.
Enfrentei o medo até ele desaparecer.
Parei de alimentar os monstros.
Me sinto bastante diferente. Tão diferente que a inadequação pode ser vista da Lua.
Meu maior desejo hoje é o isolamento. Uma casinha pequenina construída com as minhas mãos, lá no pé daquela montanha. Jardim, horta, pomar, caramanchão atelier. Eu, os bichos e a roça.
É noite de Jubileu, estou só, como naquele primeiro dia.
Anteontem foi Lua de Wesak. Eu me sinto bem iluminada.
Miguel continua comigo, faz uma graça, prega uma peça, ontem mesmo apagou um texto enorme em que eu descia a lenha na Humanidade. Acho que era forte demais para os mortais, huahuahuahuahuahuahua, ele deletou, fiquei brava na hora, depois ri com ele, caçoando da minha cara.
Durante toda a vida me chamaram de louca, sempre odiei, sempre me achei realista e lúcida.
Agora depois de quatro anos de claustro, suspeito que endoidei. Mas essa doidêra dá uma serenidade boa, que antes eu não tinha. Hoje eu faço 50 anos e a única coisa que sinto é que me basto.