04 janeiro 2023

Dias de glória

 

Por tudo que vivi até aqui, agradeço aos céus por estar viva, e ter a oportunidade de presenciar a grandeza destes dias.
Só para situar este relato no tempo-espaço, é preciso descrever como foram os últimos seis anos de um Brasil que eu já não sabia mais como definir...
No ano de 2016, Dilma Roussef era presidente do Brasil, e enfrentava sérios problemas de governabilidade e confrontou diretamente uma oposição corrupta que acuada a ameaçava com um impeachment. Dilma não se rendeu e foi vítima de um golpe orquestrado pelo presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha. Assume a Presidência, o vice Michel Temer. Foram dois anos de um governo apático e inoperante. Tudo se encaminhava para que Lula fosse candidato e ganhasse as eleições de 2018, mas uma trama novelesca foi armada, condenaram e prenderam Lula por 580 dias, tempo suficiente para proibi-lo de ser candidato nas eleições, e em seu lugar concorreu Fernando Haddad, que perdeu a eleição para o pavoroso, inominável, Bolsonaro. E então iniciaram as trevas.
Quatro anos das experiências mais pavorosas que presenciei. Instalou-se um cenário surreal de morte, destruição, ignorância e ódio. Este descritivo pode parecer exagerado, mas é a pura realidade histórica.
Começam a implantar um império de polêmicas, mentiras, um culto anti ciência, uma religiosidade distorcida, uma moral às avessas, o louvor às armas, a destruição ambiental, a total exclusão das minorias, a inversão de valores, a perseguição da cultura e da educação e por fim a valorização da barbárie.
Para cada um destes itens existem vários exemplos. As instituições de governo foram corrompidas e destruídas pelas entranhas, a corrupção expostas às claras e a realidade negada sem pudores, muitos assassinatos (inclusive políticos), a violência crescente, e surgiam propostas de leis de excludente de ilicitude para uma polícia que mata e cria roteiros onde a vítima é sempre culpabilizada por sua própria morte. Aprovaram que cada pessoa poderia ter até 60 armas, inclusive de grosso calibre, retiraram verbas da educação e da saúde, negaram a ciência até o limite da manifestação desavergonhada sobre a Terra ser plana. Perseguiram religiões, invadiram e destruíram terreiros de candomblé e umbanda, tentaram impedir
que uma menina de 11 anos, grávida,vítima de estupro, tivesse o direito de abortar. Negaram a terra aos indígenas, incentivaram a invasão das aldeias para exploração de madeira e garimpo. Envenenaram os rios. Retiraram a proteção de terras protegidas. Publicaram mentiras incansavelmente até convencer pais a não vacinarem seus filhos.
Fomos atingidos pela pandemia do Covid-19, atrasaram a compra de vacinas, fizeram maciça campanha pelo uso de medicamentos comprovadamente sem efeito, até agora são quase 700 mil mortos e ainda não temos vacinas para as crianças.
Foram muitos os incêndios e os desastres causados por enchentes e desmoronamentos de estradas e pontes. milhares de pessoas desabrigadas ou desalojadas. Rompimentos de barragens e destruição de cidades inteiras. A destruição da Amazônia se agigantando debaixo dos nossos narizes.
O crime organizado ocupando todos os espaços deixados por um Estado ausente.
O Brasil foi destroçado. E virou piada aos olhos do mundo. Uma piada incômoda e sem graça.
Parecia que absolutamente tudo em que eu acreditava não existia mais. A mais louca distopia estava estabelecida. Um fim dos tempos sem fim. O eterno "Dia da marmota" dentro de um pesadelo assombroso. Diariamente uma nova notícia ruim e a cada dia o "ruim" ganhava uma nova escalada.
Dias desesperadores.
Tive vontade de morrer. Muitos morreram. Suícidio virou coisa comum. Perdemos muitos.
O país rachou, o radicalismo virou um abismo que separou famílias, amigos e amores.
Passamos a viver entre radicais e fanáticos.
O Superior Tribunal Federal julgou que o juiz Sérgio Moro, que condenou Lula, foi parcial, e que todos os processos fossem considerados anulados.
Lula estava livre e poderia participar do próximo pleito eleitoral.
Bolsonaro usou todo o dinheiro que pode para comprar apoio, o Congresso aprovou, na calada das noites, alterações arrepiantes da Constituição. Instalou-se o Orçamento Secreto, e rios de dinheiro público desaparecidos debaixo de segredos sem fim.
As pesquisas sempre apontaram a vitória de Lula, mas nunca foi possível comemorar pois a diferença do número de votos entre os dois candidatos era mínima.
A campanha foi literalmente violenta, pessoas mortas por sua opção partidária. Um cuidado de não sair às ruas usando uma ou outra cor de vestimenta que pudesse despertar atenção e ódio dos oponentes. Pouca campanha de rua, uma aura de desconforto geral.
Foram dois turnos de uma eleição disputada voto a voto, alianças inimagináveis foram feitas e o país dividido quase exatamente ao meio. 50,9% dos votos válidos para Lula.
Bolsonaro não conformado não trabalhou mais, assinou medidas bombas enquanto teve posse da caneta presidencial, se ausentou e por fim fugiu do país temendo ser preso por todos os horrores que cometeu.
50,9% dos votos válidos ou seja 58 milhões de pessoas cantando e fazendo festa pelo Belzebú que deixava o país. Uma música de protesto e livramento virou febre e a letra diz : "Tá na hora do Jair já ir embora, arrume as suas malas, dá no pé e vá embora ! Vá te embora, vá te embora, mete o pé e vá te embora !"
E para a nossa alegria ele foi.
E chegou o tão esperado dia da posse do novo governo. Dia 01 de janeiro de 2023.
Nada era definido antecipadamente pois a segurança era uma preocupação pois os fanáticos e os radicais aprontaram muito no período entre o resultado das eleições e o dia da posse. Teve fechamento de estradas, acampamento na porta dos quartéis em diversas cidades, quebra quebra e terror em Brasília e a tentativa de explodir um caminhão de combustível cujo destino era o aeroporto de Brasília.
Mas o grande dia chegou, e o povo foi em caravana para Brasília, gente de todos os lugares do país, pretos, pardos, indígenas, mulheres, lgbtqia+,homens, velhos, crianças,  jovens, gente de toda cor, toda raça, toda fé... Janja , a primeira dama organizou uma grande festa para receber todos e festejar os novos tempos.
Que dia meus senhores, que dia minhas senhoras, que dia !!!
Valeu resistir a tudo aquilo que passamos. Valeu estar viva para ver tudo aquilo em que eu acredito raiar lá na linha do horizonte. Amanheceu um dia de muito sol, tudo ainda estava colorido e feliz após a festa do Reveillon, e chegara enfim o dia tão esperado.
Lula desfilou em carro aberto e sem colete de segurança desafiando a aura de medo instalada pelos opositores. Passou a tropa dos militares assumindo o comando das forças armadas que foram antagonistas declaradas. E na hora mais esperada que é o momento de subir a rampa do Palácio do Planalto, subiu abraçado a representantes legítimos do povo: um menino negro, uma cozinheira, um professor, um operário, uma catadora de materiais recicláveis, o cacique Raoni, um artesão, a esposa Janja e a cachorrinha viralata Resistência, Geraldo Alckimin e sua esposa Lu.
Um povo chorando em rios de lágrimas de emoção e felicidade e gratidão, por termos lutado, por termos resistido, por termos sobrevivido e por nos sentirmos vivos e representados.
O discurso do presidente Lula nos lembrou que ainda temos inimigos terríveis a vencer: a fome, a pobreza, o racismo, os preconceitos e o ódio. Teremos que trabalhar muito para reconstruir tudo que foi destruído, arrasado, teremos que salvar e recuperar a Floresta Amazônica e os outros biomas, teremos que dar às crianças a chance de recuperar os anos perdidos sem escola, cuidar da saúde daqueles que esperam nas filas e ainda enfrentar o fanatismo e radicalismo que se instalaram por todos os cantos do país.
É hora de união e reconstrução.
Foi a festa mais linda que já vi.
É como estar sonhando, não quero acordar.
Os ministérios foram anunciados, e a alegria continua brotando como fonte de água pura e límpida. São 37 ministérios, 11 mulheres e temos negras, nordestinas, indígenas, jovens, maduras, mulheres de luta e de paz, que nos representam e orgulham. Estamos saboreando com prazer a felicidade da representatividade.
Nestes dias a cada posse, a cada discurso, nos emocionamos e choramos e nos abraçamos com a fé de que ainda há esperança.
E só agora eu consigo mensurar o tamanho da dor em que eu estava afogada.
Nestes últimos anos não havia "viver", tudo foi resistência e sobrevivência, sobreviver e resistir, resistir e sobreviver... Estava tudo em um motocontínuo de horror que não havia tempo nem condição de analisar a profundidade do desespero.
Minha avó faleceu, saí do trabalho para virar cuidadora em tempo integral de uma mãe com necessidades especiais, o mundo virou de cabeça para baixo, meu país afundou nas trevas, tive câncer, me tratei e fiz a cirurgia no meio de uma pandemia, descobri que sou uma trapezista sem rede de proteção, entendi que grande parte da beleza das coisas que eu via estava apenas no meu olhar e que as pessoas não são tão bacanas quanto eu imaginava, tive que aprender a calar, tive que aprender a dizer adeus e tive que aceitar e exercitar o deixar partir... Chorei no meu próprio ombro, apertei minha própria mão, deitei no meu colo e me jurei amor eterno. Entendi que meu maior amor sou eu. Chorei quieta e lutei calada. Dei muito adeus.
Mas quando Lula subiu aquela rampa de braços dados com aquelas pessoas, e quando anunciou os ministérios e a cada discurso que assisti, uma luz acendeu. Fui tomada por um sentimento que eu não tinha há mais de 3mil dias: esperança.
Por seis meses eu passei por diversas sessões de quimioterapia, e a cada dia sentada naquela cadeira quando o remédio começava ser aplicado eu conversava com ele, com o meu corpo e com deus, e combinava com eles que tudo precisava dar certo porque eu ainda tinha algo a realizar: eu precisava plantar uma floresta numa determinada região que foi destruída pela mineração. Repeti este mantra até o remédio, o meu corpo e deus ficarem de saco cheio da minha ladainha. Por fim meu corpo se curou, o remédio foi dispensado e deus me guardou este presente e esta injeção de ânimo e de esperança.
Agora é agradecer, ficar maravilhada, arregaçar as mangas e trabalhar neste tempo de união e reconstrução e focar em cumprir o projeto na parceria que fiz com deus.
Estou viva, vi Raoni (90 anos) dizer o quanto está feliz por subir a rampa e que lutará, vi Marina Silva voltar ao Ministério do Meio Ambiente, vi Silvio Almeida se tornar Ministro dos Direitos Humanos, vi Sonia Guajajara e Joenia Wapichana se tornarem Ministra dos Povos Indígenas e Presidente da Funai.
Estou viva e sinto esperança. Estou saudável e tenho uma floresta para plantar.
Tenho 52 anos e aprendi que grande parte da beleza das coisas que vejo está no meu olhar.
Quero olhar muito para estes tão esperados dias de glória. Dias de união e reconstrução.