11 agosto 2022

Vai Passar

 


Nasci no ano de 1970 sob um regime militar ditatorial sanguinário. Sou filha de uma mistura baiana/mineira abolicionista libertária que jamais aceitou desaforo nem grilhão.
Cresci aprendendo diariamente o que era a luta, li muito, estudei sempre para saber o que dizer quando gritar e aproveitar cada oportunidade de não calar. Tudo que pulsava naqueles tempos pedia por liberdade e direitos.
Em 1984 eu já participava de movimento de estudantes pela ecologia, cultura e saúde. Atuei na arborização do bairro, no movimento antimanicomial e por fim pelas Eleições Diretas para Presidente.
Fui para os comícios, gritei, fiz camiseta, carreguei bandeira, falei por infinitas horas em cada orelha temerosa que me deu atenção.
Quando a tal Abertura Política se deu, eu já estava afundada nela até o pescoço.
Assisti ao Colégio Eleitoral eleger indiretamente Tancredo Neves para presidente, e também seu enterro, deixando José Sarney sentado na cadeira presidencial.
Entrei para o Movimento Estudantil, fui uma das fundadoras do primeiro Grêmio Livre Estudantil abertos no final da ditadura. Quando se formou a Assembleia Constituinte para formular e organizar a Constituição de 1988, tratei de me juntar aos movimentos populares na criação de sugestões de leis para a nova constituição.
Fiz trabalho voluntário em mutirões de construção de casas populares e plantio de hortas urbanas para divulgação da proposta de Agricultura Orgânica.
Quando Ulisses Guimarães fez o discurso de promulgação da Constituição de 1988, chorei com a emoção daqueles que entendem o valor da participação na história de uma nação. Me sentia um ser político.
Já estava na universidade quando o então Presidente Fernando Collor de Melo quase afundou este país e lá fui eu de novo para as ruas lutar por seu impeachment. Outra vez o Vice ficava com a cadeira vaga. Por muitas vezes me envergonhei por ter Itamar Franco como presidente do meu país (mal sabia eu tudo o que estaria porvir...). Assisti sem entusiasmo as eleições de Fernando Henrique Cardoso e passei a empenhar minha energia cidadã nos movimentos sociais e ambiental.
Fiquei feliz quando Lula se elegeu, cheguei a cultivar esperanças... Minhas expectativas eram grandes mas os dois mandatos de Lula não puderam alcançá-las. Quando Dilma foi eleita, o meu ser político já não tinha mais a mesma tenacidade, a descrença já havia se instaurado com sucesso. Ainda assim quando se estabeleceu a ameaça de golpe, lá fui eu novamente para as ruas bradar a minha contrariedade ! De nada adiantou. Mais uma vez, estava eu estupefata diante de um Congresso bradando idiotices e bravatas, esfregando na cara de uma nação que o voto do povo significava absolutamente nada.
Não tenho palavras para descrever o que senti ao ver aquela mulher ser traída, expulsa de seu lugar por direito por um comboio de abutres sedentos por dinheiro e poder. Serei sempre solidária à Dilma. Não concordava com ela, não depositava sobre ela nenhuma expectativa, mas jamais concordarei com o que fizeram com seu mandato e seu direito de representante eleita pelo povo. Dilma foi gigante ao enfrentar aquela corja.
Em 2013 fui para a rua expressar minha indignação com a situação do país, apanhei muito da Polícia Militar, me bateram em frente à Igreja da Consolação, para todo lado que eu olhava eu via pessoas comuns, estudantes, pais, idosos, cidadãos apanhando de seus funcionários responsáveis por sua segurança. Ali eu achei que não dava mais para o meu ser combativo.
Eu já havia apanhado bastante em outras situações de manifestações, mas nunca com tamanha truculência, não era apenas para manter a ordem e a segurança pública, era a maldade no olho do algoz, era novamente o torturador fardado. O Geraldo autorizou o uso da força e a PM não o decepcionou.
Tiro, porrada e bomba.
Em 2016, quando os estudantes ocuparam as escolas, lá fui eu apoiar e pra variar novo encontro com a PM do Geraldo. Jamais esquecerei Geraldo, jamais. Inclusive a reunião com o Odilo para se "aconselhar" em usar a PM para invadir as escolas ocupadas pelos estudantes. Jamais esquecerei viu Geraldo, viu Odilo!
Quando fui dar meu apoio à Dilma, ainda estava fresca a memória das pancadas de 2013. Me preservei mais, já tinha um brotamento de uma sensação de que talvez esta luta não estava valendo tanto sangue e dor...
Daí em diante foi só ladeira abaixo...
Políticos correndo para todo lado com suas malas de dinheiro desviado, escutas telefônicas revelando quadrilhas de corruptos infiltrados em cada fresta das paredes das casas do poder.
As leis enfraquecendo, as maracutaias se agigantando e mostrando a cara em plena luz do dia e por fim
a caça ao Lula afogado sob uma tempestade de acusações pré fabricadas com um intuito único e exclusivo de afastá-lo do próximo pleito eleitoral. Um circo. As leis viraram um teatro de fantoches, o magistrado virou uma vergonha cotidiana e no horizonte se levantava uma nuvem cinzenta das próximas eleições...
2018, lá estava eu novamente, vestida de roxo marchando bravamente e gritando a plenos pulmões ELE NÃO !, tentando evitar inutilmente a eleição do pior ser humano que certamente brotou deste chão chamado Jair Messias cujo nome me dá enjoo ao ser mencionado. Este ser que não merece ser descrito é um destruidor potencial. Nada nele cria ou prospera, é possuidor de tamanha ignorância e falta de sabedoria que só a maldade e a covardia conseguem lhe fazer chão. A História se encarregará de dar a este homem o seu devido lugar entre os estúpidos e ridículos tiranos. Por sua vontade e ignorância mais de 680 mil vidas foram perdidas por não termos vacinas de Covid a tempo de evitar a tragédia desta pandemia. Outras tantas vidas se foram por fome, ódio, preconceito, tragédias ambientais evitáveis...
2022, estamos novamente às vésperas de eleições e faz 4 anos que esse Presidente só faz profanar as urnas e o sistema eleitoral do país, vocifera mentiras ininterruptamente numa tentativa de torná-las verdades, não houve um só dia de sossego, insufla ódio, premia os malfeitores, ofende, desrespeita, debocha.
Numa tentativa de repetir a técnica de Donald Trump contra a democracia americana, que por sinal não funcionou, mas custou a vida de várias pessoas, por aqui o tal Jair vem num constante processo de atacar a legitimidade do sistema eleitoral e sinaliza que não aceitará o resultado das urnas em ameaça direta ao sistema democrático de direito. Ninguém aguenta mais, recessão, desemprego, inflação, fome, preconceito de todos os tipos, violência, desrespeito de toda ordem : cultural, de gênero, de raça, de religião. Hoje dia 11/08/2022 foi lida em 13 estados da federação, uma carta em que a sociedade brasileira se manifesta firme no propósito da defesa do sistema democrático de direito e na confiança ao sistema eleitoral deste país. Patrões, empregados, homens, mulheres, lgbtqia+, estudantes, negros, indígenas, brancos, cidadãos e cidadãs unidos para exclamarem a quem interessar possa que apesar de quietos estamos atentos e não vai ser sem luta. No pátio da Faculdade de Direito do Largo São Francisco em São Paulo, na manhã de hoje, chorei ao ouvir a estudante ler seu discurso avisando que os jovens não aceitarão retrocessos. Hoje a jovem Manuela falou tão lindo e forte que a menina que um dia fui lá no ano de 1984 ouviu e se emocionou. Falaram mulheres negras e brancas, uma filha de Oxum, e lá estavam para ouvir guerreiros de todos os tempos deste chão. Até o momento são quase um milhão de assinaturas apenas nesta carta. E são várias cartas. O Presidente mais uma vez debocha e chama o manifesto de "cartinha". Claro, não vai assinar, é contra, prefere homenagear e dar louros a bandidos e torturadores.
Eu estou aqui, viva, sem muita esperança de futuros, mas confortada em saber que tenho 52 anos, jamais fugi da luta, que sinto que estou assentada do lado certo da luta por justiça e direitos equalitários para toda a gente desta terra onde nasci.
Já não tenho expectativas ou esperanças político partidárias, nem mesmo acho que os problemas deste país se resolverão em tão breve, mas dentro do meu peito há um calor quentinho em saber que tudo isto VAI PASSAR !